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A palavra “mulher”

Recentemente compartilhei nos meus Stories uma postagem da colega Lana de Holanda que começava assim:

Um lembrete: dá pra falar sobre gestação, questões ginecológicas, saúde reprodutiva etc, sem para isso precisar excluir homens trans e pessoas não binárias do debate e da luta por direitos.

Em resposta a esta postagem, que faz parte de um texto maior, que pode ser lido aqui, uma pessoa que me acompanha há alguns anos me escreveu dizendo algo como

não! essa pauta é exclusivamente das mulheres!

Ao ler essas duas sentenças, deve estar claro para você a essa altura que não se trata “meramente” de uma questão de linguagem. Está-se falando aqui 1) dos direitos reprodutivos de mulheres 2) dos direitos reprodutivos de pessoas trans, e 3) de como esse direitos são apresentados às pessoas através da linguagem e, finalmente, 4) como eles reverberam no emprego de alguns termos importantes, como a palavra mulher, que veremos a seguir.

Linguagem inclusiva de gênero
Darei aqui um passo atrás, então, para falar brevemente sobre a linguagem inclusiva de gênero, também chamada de linguagem neutra. Primeiro, é preciso dizer que não há linguagem neutra, no sentido de neutro = não carregar qualquer ideologia. A linguagem inclusiva de gênero, ou neolinguagem, procura trazer à língua formas que se adequem melhor a comunidades de falantes que não se identificam com o uso das formas feminina e masculina correntes, hoje, na língua portuguesa. Essas formas, que têm transitado entre -x, -@ e -e, vem sendo bastante discutidas. Tenho vídeos sobre o tema aqui e um texto escrito para a revista Marie Claire aqui. É dessas formas que surgem, por exemplo, “bem-vindes”, “todes”.

Masculino, feminino e neutro genéricos

Discussões em torno da linguagem inclusiva de gênero se confundem com a questão do masculino genérico. Explico: muitas pessoas que reconhecem a linguagem inclusiva de gênero fazem uso do morfema “- e” no final das palavras para designar um agrupamento diverso de indivíduos, e, ao invés de dizer “todas” ou “todos”, usa “todes” para designar esse grupo. Algo como:

Todes participaram das conversas e se emocionaram com o evento.

O questionamento do uso do masculino genérico é parte vital dos estudos feministas da linguagem. Foi através desses estudos, ainda na década de 70, que se pôde encontrar inúmeras afirmações, em gramáticas normativas, de que as mulheres são inferiores. O artigo de Ann Bodine, que traça um percurso histórico sobre as gramáticas inglesas, mostra isso claramente. Daí surge o questionamento ao uso do masculino genérico que, longe de ser “simplesmente” uma regra gramatical, tinha muito que ver com um entendimento do papel da mulher na sociedade reverberado na criação de regras gramaticais nada aleatórias e bastante atreladas ao pensamento da época. Essas reflexões levaram, por exemplo, ao uso de “senhoras e senhores” como forma alternativa a “senhores”.

Eu me lembro, por exemplo, da professora Debora Diniz dizendo que fazia usos variados do genérico: ora o feminino, ora ambos, quando as discussões sobre o masculino genérico pelas feministas borbulhavam. Ela o fazia inclusive em artigos acadêmicos, para chacoalhar a dinâmica das instituições mais tradicionais. Eis, inclusive, a potência da língua: não existe apenas uma forma de dizer as coisas. Não se esqueçam disso.

Anos depois, cá estamos nós, diante de muitas pessoas fazendo uso do “neutro genérico”, num movimento parecido com o discutido no parágrafo anterior, em que se propõe o uso do feminino genérico ao invés do masculino genérico. Eu mesma usei o “sejam todes muito bem-vindes” no canal por um bom tempo. Um dia, no entanto, lendo um apontamento da linguista e professora Raquel Freitag, me dei conta de que a forma “todes” não é neutra. É a forma que, aos poucos, vem se constituindo como aquela que se refere a pessoas trans não-binárias, por exemplo. Eis a variação em curso na língua. Tenho procurado dizer, então, nos meus vídeos, “sejam todas bem-vindas, bem-vindes e bem-vindos”. Assim, abarco todas as pessoas que reconheço fazendo parte da comunidade de espectadores do meu canal.

Pois bem, eis os usos que vão se consolidando das formas novas trazidas pela linguagem inclusiva de gênero.

O termo “mulher”

Corta para 2021. Em setembro, completou-se 1 ano do falecimento da famosa juíza americana Ruth Ginsburg. Suas falas sobre os direitos das mulheres são bastante conhecidas. A ALCU decidiu homenageá-la. Na ânsia por promover uma linguagem mais inclusiva, o que se fez foi alterar uma fala da juíza, “adequando-a” à linguagem inclusiva de gênero. Assim ficou a citação: no lugar de “woman”, a palavra “person”; no lugar de “her”, o pronome “their”.

The decision whether or not to bear a child is central to a person’s life, to their well-being and dignity.

Para mim, nitidamente um erro. Mas, ao fazer essa afirmação, quero logo explicar o porquê. Porque não foi isso que a juíza disse. Isso significa que ela estivesse excluindo pessoas da comunidade LGBTQIA+? Não sei, eu não conhecia o trabalho da juíza a fundo. Mas não me parece plausível “corrigir” a fala dela, em uma homenagem, alterando o que ela disse, para adequá-la às discussões correntes. Não se altera a fala de alguém, uma citação histórica. Este é, para mim, o problema. Feministas de diferentes parte do mundo se indignaram por conta do “apagamento do termo mulher”.

No entanto, essa conversa não precisa construir outras camadas de preconceito e exclusão. O meu problema está quando ela vem acompanhada de afirmativas preconceituosas e também excludentes, como no caso da afirmação no início desse post de que a luta pelos direitos reprodutivos é EXCLUSIVAMENTE das mulheres.

Não, não é. É uma luta historicamente capitaneada por mulheres, e que, hoje, abarca também outras identidades, pessoas que podem engravidar mas não se identificam como mulheres. E essa afirmação, pasmem!, não exclui o fato histórico do protagonismo da luta das mulheres pelos direitos reprodutivos.

Volto para o caso da citação: imagino que a motivação para o apagamento da palavra “woman” da fala da juíza Ginsburg é o possível desejo – ou sentido de necessidade – de incluir outros grupos “que não apenas” as mulheres. Para mim, quase uma “hipercorreção”, como se não fosse mais correto fazer uso do termo mulheres. Isso me parece um equívoco. No entanto, também me parece um equívoco ignorar ou excluir as demais identidades da discussão sobre esse e outros temas que aproximam mulheres (cis e trans) e pessoas não-binárias.

Claro está que as mulheres são historicamente os indivíduos que capitanearam a luta pelos direitos reprodutivos. Já disse isso neste texto e repito para que fique claro esse reconhecimento. Isso não precisa – e não deveria – ser apagado. Assim como, também, não deveria ser apagado o direito de pessoas trans de participarem dessa luta, dessa discussão, como sugerido, novamente, na afirmação no início desse texto.

Eu não acho que uma luta historicamente das mulheres precisa ser APENAS das mulheres e, entendo, talvez no meu mundo poliana, que uma coisa não precisa excluir a outra – o que, também, reverbera na língua. Assim, ao se falar de aborto, é possível usar a palavra mulher e também “pessoas com capacidade de gestar”, por exemplo. Mulheres que assim se reconhecem, como eu, seguem ali, presentes. E pessoas de outras identidades que não se reconhecem também se sentem acolhidas.

Você pode até me dizer “mas não é isso que está acontecendo”. Pois bem. Que essa discussão se coloque, ao invés da discussão que é recheada de preconceitos.

Uma outra conversa que pode ser feita tem a ver com os usos dessas formas, se elas são reconhecidas e entendidas pelos falantes da língua. Isso, o tempo dirá, se as formas “pegarem”. Essa discussão vale para o feminino genérico (que ainda hoje é discutido por falantes que brigam por entender que o masculino já abarca a todos em função daquilo que aprenderam na gramática normativa, sem conhecer a história por trás do surgimento do masculino genérico); para a linguagem inclusiva de gênero e suas formas (linguistas, por exemplo, discutem a probabilidade de pronomes como ‘ilu’ se consolidarem, em função do que representam na estrutura das línguas e do quanto se transforma – pouco – ao longo da história das línguas); e vale também para a tentativa de incluir formas, às vezes complexas e que podem soar estranhas a muitos falantes de diferentes comunidades, como “pessoas com cérvix” para se referir de maneira mais “geral” a mulheres e pessoas de outras identidades.

Este é um assunto delicado e, acredito, para ser discutido é preciso voltar ao básico e entender o que as chamadas inclusões significam: elas vem na contramão do apagamento de mulheres e de pessoas da comunidade LGBTQIA+ pelas dinâmicas sociais em que o homem cis hétero vem sendo o centro há séculos. Quando outras lutas parecem colidir entre si, voltar a esse ponto é crucial.

Eu, particularmente, não vejo o termo “pessoas com cérvix” (que ficou conhecido em discussões na Inglaterra) sendo empregado assim, sozinho, num texto ou numa fala. Ao menos não hoje. Muitas pessoas sequer têm ideia do que seja cérvix. E sequer acredito que essa seja a ideia, excluir da face da Terra a palavra ‘mulher’ em favor exclusivo dessa outra forma. Mas já vi em textos que discutem sexualidade de crianças a palavra “menina” vindo acompanhada de outras formas que abarcavam outras identidades. Imagino que possa acontecer o mesmo no caso de meninos.

Penso que, na tentativa de produzir textos que atendam às discussões presentes na sociedade hoje, muitas pessoas e instituições tenham dificuldade de “calibrar” como falar sobre questões que envolvem aspectos biológicos do ser. É mesmo um desafio, que vai se refazendo conforme as discussões seguem acontecendo. Esses desafios não significam que pessoas trans querem apagar as mulheres, o que me parece absurdo.

O exemplo acima, da discussão em torno do apagamento do termo “mulher”, tornou-se um caso em que muitas mulheres acabaram por discutir o apagamento, direcionando sua atenção para a comunidade trans e reproduzindo argumentos muitas vezes preconceituosos.

É claro que eu não quero que o protagonismo das mulheres que vem historicamente batalhando pelos direitos reprodutivos seja ignorado ou apagado. Evidente. No entanto, isso não significa dizer que a luta do aborto é uma luta EXCLUSIVAMENTE feminina. Também não significa que propor que “pessoas que engravidam” acompanhe o termo “mulheres” seja um erro. Eu quero – e espero – que as mulheres e demais pessoas que engravidam tenham o direito de abortar, se assim o desejarem. Quem impede o avanço desses direitos são grupos majoritariamente capitaneados por homens conservadores, que seguem defendendo a regulação dos corpos das mulheres e demais pessoas que engravidam. É com eles que não consigo conciliar.

Quero que, na língua, mulheres que se identificam como mulheres possam fazer uso da palavra “mulher” e pessoas que se identificam como “pessoas não-binárias” possam igualmente fazer uso do termo “pessoa não-binária”. Uma não deveria – ou precisaria – se sobrepor à outra.

Parece que, ao tentarem ser mais inclusivas, algumas organizações, como a ALCU, não sabem bem como conduzir a conversa, como no caso da alteração da fala da juíza. Acredito que o meu papel, como linguista, é, muito modestamente, apresentar os enfrentamentos e tentar apontar caminhos. Não serei eu a afirmar o que vai se concretizar na língua daqui a 50 anos. E provavelmente não estarei viva até lá para constatar o que ficou ou não. Olhando, no entanto, para o passado, observo que, embora o masculino genérico siga sendo empregado regularmente, ele não está mais sozinho, outras formas o acompanham. Que assim prossigamos, com formas variadas a co-existir, não a se excluir.