Voltar

A gravidade da masculinidade

Eu estava passeando pela timeline do meu Xuiter, quando me deparei com o repost da chamada de um texto do Antonio Prata que tinha sido publicado na Folha. No repost, Marcelo Rubens Paiva manifesta declaradamente sua opinião a favor do argumento do colega escritor, Antonio, e, ao fazê-lo, afirma que não tem coragem de escrever por ser um homem hetero, branco, cis. Complementa com mais informações: “de gerações ultrapassadas e autor indicado em vestibular”.

Primeiro eu aproveito para dar parabéns ao Marcelo. Que bacana que seu trabalho já foi leitura obrigatória da Fuvest. Um sinal significativo de que não se lê apenas Machado de Assis nos vestibulares, e que a indicação de sua obra como parte da lista não invalidou ou impossibilitou a leitura dos cânones – lista do qual o autor não faz parte, é sempre bom lembrar, já que se gosta tanto de tirar cânones de suas tumbas em ocasiões como as que trago aqui. Novamente, parabéns. Bacana.

Sigo então este texto para ponderar sobre alguns pontos específicos do texto do Prata, que não conheço e, já adianto, com quem não tenho qualquer problema de ordem pessoal. Na dúvida, a gente já avisa. Vai que acham que é inveja, não é mesmo?

O artigo de opinião me causa incômodo logo de cara porque parte do princípio de que a escolha de uma lista com autoras mulheres seria apenas uma “boa intenção”. E que, contra boas intenções, não se poderia nada dizer, afinal, boas intenções. Me chamou também a atenção escolher trazer, logo no primeiro parágrafo, referência a uma possível “canalhice” derivada da política da “boa intenção”. Mas, veja, se é assim que se coloca o debate, sequer seu argumento pode ser debatido, e entramos em uma grande festa da circularidade. Rodamos, rodamos, e nada.

Depois me chama a atencão essa necessidade de caracterização da escolha da Fuvest como uma “ação de esquerda”. Porque fica aquela coisa etérea, aquela esquerda que não sabe o que faz (mas ele sabe, claro) e, de novo, a crítica, não sei para onde vai.

Acho também interessante a ideia de que a simples criação de uma lista, por alguns anos determinados, ainda lá adiante, de autoras exclusivamente mulheres, interromperia, automaticamente, qualquer debate e leitura de obras escritas por homens. Fiquei tentando entender onde é que isso está escrito ou postulado. Como professora, estou ciente de que as salas de aula desse Brasil leem diferentes obras ao longo dos muitos anos (mas, olha, estamos precisando pressionar governos estaduais, por exemplo, para ter bibliotecas mais convidativas, e salas de aula idem, para se falar de e ler literatura. Fica aqui a dica de artigo!), não apenas aquelas sugeridas para o vestibular. Se o foco nos últimos anos escolares está nessas listas, o problema está antes delas, na estrutura que fomenta a lógica do vestibular em si. Mas isso é papo pra outro dia. (Assim como é papo para outro dia a maneira como se fomenta a leitura nas escolas, a questão dos tais cânones e assim por diante. Mas… outro dia, certo?)

Tem também o aspecto de dizer que “as mulheres estavam oprimidas e caladas”, para mim, uma imensa simplificação. Ao fundamentar a conversa neste pé é que é possível que se assuma (mesmo que nas entrelinhas) que não há mulheres tão boas quanto os vários autores que ele decide citar pelo caminho de seu texto. Mas me espanta que as pessoas simplesmente aplaudam essa lógica argumentativa, sem pensar que, devo dizer, não é essa a realidade. Sem precisar fazer muita pesquisa, é possível reconhecer muitas mulheres importantes na literatura, em diferentes épocas. Cada vez mais se desbrava, inclusive, a importância das mulheres para a construção de inúmeros trabalhos assinados por homens (quem poderia imaginar?), ainda que não fossem mencionadas. Quem aí não se lembra, também, do tempo em que se começou a escarafunchar dedicatórias de livros escritos por homens, descobrindo um mar de mulheres que não só cuidavam de tudo da casa, mas, muitas vezes, também da escrita de seus maridos.

Assim, me incomoda trazer a questão do machismo para pontuar que as formidáveis não produziram em pé de igualdade com homens, ou não existiram. Certamente não sob as mesmas condições, mas isso não significa que inexistam – evidentemente.

Tem também uma outra questão, os sistemas que validam as figuras apenas masculinas, os parceiros, os colegas de uma mesma elite intelectual. Não deveríamos também pensar neles, ao invés de simplesmente assumir de alguma maneira que, por haver opressão, nada relevante foi produzido por mulheres durante séculos?

Além disso, achei interessante trazer Newton pra conversa. Não tem ninguém questionando a gravidade (quer dizer, depende, acho que não, mas a extrema direita está aí para nos surpreender), tampouco a importância do físico. Mas isso não significa ignorar as circunstâncias de sua produção e trazê-las para o centro. Também não tem ninguém “calando vozes” porque uma lista de livros escritos por mulheres existe (e por tempo determinado, vale lembrar).

Ou então o que temos é a completa banalização do sentido de “calar vozes”, igualando a existência da lista aos séculos em que as mulheres, mesmo produzindo, não puderam ter vez. E aqui, insisto no “mesmo produzindo”. Pode ser também que se esteja esquecendo os muitos anos em que, nas próprias listas da Fuvest, apenas uma ou duas mulheres, entre nove livros, eram escolhidas. Se bem que se seguimos o argumento de parte do texto do Prata, essa escolha seria justificada porque elas estavam caladas e, portanto, não produziam. Não haveria o que buscar, afinal, a história já está dada e dita. Simples assim. Hm?

Pelas “bordas” muito se fez e se faz. O mundo como se configurou ao longo do tempo é que nunca quis ver e construiu seus monumentos à revelia dessas outras tantas manifestações. Ou ainda melhor, viu, ignorou, reprimiu – e assim segue fazendo (como demonstram os comentários à coluna, por exemplo).

E se a memória não alcança, um lembrete estatístico da lista da Fuvest:

2018 – 9 livros, 8 homens, uma mulher
2019 – 9 livros, 8 homens, uma mulher
2020 – 9 livros, 8 homens, uma mulher
2021 – 9 livros, 8 homens, uma mulher
2022: 9 livros: 8 homens, uma mulher
2023: 9 livros, 8 homens, uma mulher
2024: 9 livros, 8 homens, uma mulher
2025: 9 livros, 7 homens, 2 mulheres
2026: 9 livros, 8 homens, 1 mulher
2027: 9 livros, 9 mulheres

É sempre importante lembrar: pontuar esses números não implica em negar a importância dos autores homens indicados – mas veja o quanto são exaltados ano após ano, como se nada produzido por mulheres existisse.

E para além de pontuar que o machismo impediu mulheres de se desenvolver, que tal também lembrar da mediocridade masculina costumeiramente aplaudida, até hoje, porque se faz parte de um grupo que a valida e sustenta?

Saibamos, portanto: a gravidade não mudou, tampouco a importância de Newton. Mas, para além de apenas celebrar sua relevância, é possível reconhecer quem esteve e está nas frestas, produzindo muitos trabalhos sem qualquer menção ou reconhecimento. E isso não desfaz a existência de Newton, tampouco impede a leitura de homens. Basta ver a lista de homens e mulheres nos vestibulares dos últimos anos.

Fiquem tranquilos, Marcelo e Antonio, não acabou a literatura, tampouco ela foi diminuída porque apenas mulheres foram indicadas para um vestibular que está longe de acontecer. A escrita de notas tão indignadas revela, em contrapartida, este olhar desrespeitoso às obras selecionadas e sua relevância (como estamos vendo, ainda ignorada) porque, depois de tantos anos em que quase apenas homens eram indicados, teremos por poucos anos, apenas mulheres.

Fica o convite a todos para lê-las, evitando assim de insinuar, de alguma forma, a possível canalhice de uma escolha de nomes relevantes da literatura mundial, ainda que não sejam os mesmos de tantos anos anteriores. Estes que em 2026 não estarão na lista, seguirão nas escolas. O tempo fará muitos deles não mais estar lá, um movimento que faz parte da história.

Mas é parte também da história reconhecer as vozes esquecidas – e brilhantes. Não amanhã, no mundo ideal em que elas supostamente “evoluirão” a ponto de poder fazer parte das listas. Um pensamento, uma vez mais, fruto de profundo desrespeito a essas produções, e também foco de um olhar bastante conservador sobre a literatura, sobre a escrita. Elas estão, dentre tantas outras esquecidas, na lista. E não precisam ser Locke, Hobbes ou Shakespeare para ali estarem. É subvertendo justamente essa métrica que as tantas vozes ganham vez. A qualidade segue ali, em uma e em outra. E a maçã seguirá caindo – cuidado apenas para que não seja na cabeça de alguns de vocês, se se esquecerem de olhar para além do umbigo de uma masculinidade (e um sistema) adoecida. À esquerda, e à direita.

(E veja só, não foi preciso chamar ninguém de machista para que essa conversa acontecesse. Porque, entendo bem, é possível ir além)